O relógio marcava pouco depois das quatro horas quando as pessoas começaram a entrar no pavilhão Carlos Lopes, ao lado do Parque Eduardo VII. A passo lento e tímido, preenchiam, ainda que de forma morosa, os vários espaços do festival à espera de avivar uma memória que outrora estivera dormente: a saudade da música ao vivo. O FNAC Live voltou para a edição deste ano no passado sábado, dia 2, numa data especial – um dia após Portugal ter entrado na terceira e última fase de desconfinamento provocado pela pandemia do coronavírus, que colocou praticamente todos os espetáculos culturais em espera e os profissionais da cultura e do audiovisual num estado de incerteza.
Ao contrário das normas com as quais aprendemos a viver, a circulação desta vez poderia ser feita sem máscara ao ar livre e sem grandes preocupações em relação ao distanciamento social; no entanto, as marcas no chão eram facilmente visíveis, assim como os pontos de referência com álcool desinfetante nos cantos do recinto. As primeiras três horas serviram para exibir os novos rostos da música portuguesa sob o mote do concurso Novos Talentos FNAC 2021: aqui o lema assentava-se na diversidade: de som, ideias, nacionalidades e especialmente emoções.
E como tal, Chica foi a primeira a pisar o palco. A cantautora apresentou-se tímida, mas as letras que profetava carregavam em si o peso vivido pela sua geração: “Brincar à coletividade/ Com tanta individualidade/ Com estágio profissional/ A fazer-se gente e tão contente”, salientou em “Brincar Com o Cão”. A presença dela rememorava a era da contracultura dos anos 60 – geração indignada e farta de ser subjugada pelo status quo –, que na verdade viu nascer grandes ícones do folk político, como Joni Mitchell, Karen Dalton e Judee Still. Chica não tem tanta bravata como elas, mas está no bom caminho: o primeiro ato do FNAC Live fez-se de punho erguido e com um tributo a José Mário Branco na maravilhosa “Cantiga Sem Maneiras”. “Eu não falei nos outros concertos, por isso tenho de falar neste”, lembrava. Chica, já no final, cantava que tinha “amigos em todo o lado” e certamente saiu do festival com uma mão cheia de novos fãs.
Entre intervalos, havia DJ Sets de Da Chick enquanto o público ambulava de rulote a rulote, para buscar mais uma cerveja ou para matar o bicho da fome à hora do lanche. À entrada, João e Madalena, casal do Areeiro, disseram que tinham saudades deste ambiente e mal contavam os dias para ouvir de novo os acordes de uma guitarra, um microfone a ser ligado, um zumbido entre as colunas: “espero que este seja o primeiro de muitos festivais nos quais podemos realmente marcar presença”, referia Madalena, “já há muito que estamos a precisar de ambientes assim”.
A festa fez-se ouvir com os ritmos frenéticos de Beiro, um hip-hop bastante vivo e abstrato, que misturava em si batidas trap, mas sem se esquivar à amargura da guitarra tradicional portuguesa – especialmente no tema “Rosa Negra”. Ao seu lado, João Não dava voz a todos estes temas de moradas erradas, corações partidos e poemas não lidos. Por esta altura, havia uma ou duas pessoas que se atreviam num passo de dança, até porque era inevitável.
A festa continuou com os Acácia Maior, banda vencedora da edição deste ano, que trouxeram os sons cálidos e energéticos cabo-verdianos enquanto a temperatura descia e o sol se punha. Para eles cantar ao vivo é representar a morna e o funaná, estilos habituados a quebrar barreiras linguísticas e geográficas. Ao lado, tinham Eliana Rosa e Cachupa Psicadélica que passaram uma mensagem sobre a essência da música africana e quão importante é preservá-la e respeitar, acima de tudo, quem a faz: “A cultura é nossa, a morna é nossa”, proferiam. Notou-se que esta atuação foi recebida com o habitual calor que os Acácia Maior davam a Lisboa, e ao chegarem ao último tema, o público tentou pedir por mais.
Perto das 19 horas, já se faziam os caminhos para dentro do pavilhão: as filas para a casa de banho aumentavam assim como a pressa para se colocar as máscaras na cara – requisito ainda de pé para espetáculos fechados. Os Lefty, o novo projeto de João Nobre, ex-membro dos Da Weasel, quebraram o gelo e fizeram-se ouvir: um rock pesado e cheio de atitude – devido em grande parte aos vocais cheios de garra de Leonor Andrade, que fazem lembrar uma jovem Shirley Manson. A banda apresentou o álbum de estreia, Andrómeda, para uma plateia que apanhava cada palavra e saltava a cada batida. “As saudades que tinha de sair de um concerto a soar”, disse Ricardo ofegante após ter passado meia hora a cantar os temas da banda. “Quarto 25”, “Fiança”, “Cais” e “Sede” foram alguns dos temas apresentados e que cimentaram os Lefty como uma lufada de ar fresco na música rock nacional.
No entanto, um dos momentos mais aguardados da noite veio pouco depois: Benjamim, o nome artístico de Luís Nunes, reuniu uma sala praticamente cheia e pronta para ouvir o novo disco, Vias de Extinção, editado em setembro deste ano. Os ritmos nostálgicos e eletrónicos, banhados em sintetizadores analógicos, tomaram a atenção – num reportório que também guardou espaço para clássicos, como “Dança Com os Tubarões” e “Terra Firme”. Luís partilhava o entusiasmo e a excitação de quem o ouvia: “finalmente!”, gritava. Há muito que cria apresentar estas novas canções, cuja produção faz jus à maravilha da noite lisboeta e a tudo aquilo que nos foi tirado com a pandemia. “Já podemos dançar, sabiam?”, certificava-se. “Ângulo Morto” foi sem dúvida o ápice do concerto ao fazer-nos lembrar o quão libertador uma pista de dança pode ser; nela canta “que o tempo escreve a história” e, neste casso, assim o fez.
Ao contar as nove horas, faltavam pisar o palco do FNAC Live dois grandes nomes: Marta Ren e Jorge Palma. E enquanto a música fazia uma pausa, também as pessoas fizeram: a esta altura, já de noite cerrada, as mesas enchiam-se de grupos de amigos que aproveitavam e metiam a conversa em dia, sempre com a presença das luzes dos telemóveis; ouvia-se o acalorar dos grelhadores, o tintilar dos copos com gelo em contraste com os risos que se trocavam. Por momentos, o reencontro do contacto humano fez-se sentir de forma orgânica. Os maiores festivais foram adiados para o próximo ano, mas no Marquês de Pombal a realidade pré-pandémica estava a ser imposta lentamente.
Sem atrasos, Marta Ren, desta vez sem perucas coloridas, fez-se ouvir com o seu som retro de big band ao qual nos habituara. Elementos de jazz, soul e funk cativaram quem estivesse em pé desde as quatro da tarde e recobraram as forças para mais uma dança. Sem grandes pausas e sem perder o fôlego, este foi sem dúvida um dos concertos mais vivazes do festival, que aqueceu devidamente a plateia para a figura pesada do cartaz que se seguia.
Jorge Palma foi recebido com palmas e gritos num recinto cheio. Tanta aclamação não serviu somente para matar as saudades de o ver em palco, mas também para celebrar a carreira que se estende por mais de 40 anos. E o concerto deste sábado, no Fnac Live, serviu para percorrer o rico catálogo que tem marcado o cânone da música popular nacional. Houve espaço para “A Gente Vai Continuar”, “Estrela do Mar” e uma ânsia para que chegasse “Frágil”. Palma é um veterano que sabe comunicar com facilidade com uma audiência, especialmente quando a mesma deseja ouvir música ao vivo. “É tão bom estar rodeado de tantos amigos”, confessou enquanto a euforia se mantinha. Em 1998 cantava-nos que estava n’O Lado Errado da Noite, pois ontem – como em tantas outras instâncias – estava no sítio certo, com as pessoas certas.
Após Palma, a noite continuou para quem tinha estamina e força nas pernas. Os Fogo Fogo mantiveram a chama acesa com as músicas do novo trabalho, Fladu Fla, e. projetaram os típicos e incandescentes compassos até se chegar à meia noite de domingo. O Fnac Live foi um pequeno exemplo daquilo que Lisboa poderá experienciar no próximo ano: uma realidade cheia de música, toques, suor e muita diversidade – tudo o que a capital está a precisar.