Vale glaciário de Loriga: a natureza como arte

Acordámos, abrimos o fecho das tendas e ainda com os olhos trémulos olhámos a paisagem à nossa frente: o vale glaciário de Loriga impõem-se tal Adamastor. Mas este, pelo contrário, não provoca receio. Atrai-nos como íman tal como adolescentes munidos de paixão e é pela razão que aqui estivemos, mais uma vez…

Vale glaciário de Loriga
Vale glaciário de Loriga: a natureza como arte - ©Nuno Adriano

Vale glaciário de Loriga: Preparativos da epopeia

O dia iniciou-se na Praia Fluvial de Loriga, uma das Sete Maravilhas Naturais de Portugal, com o café do montanheiro bem quente, um pequeno-almoço redobrado e falámos de riso na cara da aventura que se avizinhava. Subir pelo vale glaciário de Loriga até à Torre. Seria um dia de descobertas, de contacto direto e em 1.º grau com a natureza austera da Serra Estrela. Uma ode a um dos cenários naturais e ícones do nosso país, que pretendia dar a conhecer aos meus convidados de Nova Iorque. Lancei esse repto e nem hesitaram em aceitar…

3, 2, 1… Partida para o vale glaciário de Loriga

Deixámos a simpatia e a pacatez da vila de Loriga para trás. Loriga esse nome tão antigo que se perde nos séculos. Uma terra de pastores que construíram uma cultura pastoril muito vincada, inteiramente ligada também ao trabalho árduo e habilidoso da lã. Seguimos pelos antigos trilhos pastoris, autênticas reminiscências da antiga transumância, uma atividade que se confunde com a história da interação milenar Estrela – Homem.

Subir, subir, subir…

Segundo a crença, o que custa mais é o que melhor sabe. Sempre tentei pôr em cheque esta teoria, mas neste caso tivemos que nos render. Confirma-se que cada vez que percorremos este trilho, tudo se assemelha como fosse a primeira vez.  

Surgiu-nos uma pintura algo grotesca numa rocha e relembrou-nos então que a história é, por vezes, inglória. Próximo deste local, seis cidadãos ingleses, entre pilotos e tripulantes, ‘renderam-se’ à imponência da Estrela e aqui findaram as suas vidas, quando a aeronave onde seguiam colidiu na Barroca do Marte Amieiro, abaixo da Penha do Gato, decorria então o mês de Fevereiro de 1944.

A Lua desceu à Terra…

Como diz um grande amigo meu, nestes dois covões (Areia e Nave) parece que “a Lua desceu à Terra”. Cenários muito particulares, inóspitos, cavados pelo antigo glaciar de Loriga e que hoje nos deixou um amplo vale cavado, de paredes abruptas, trajeto retilíneo, marcado por rochas polidas e repleto de depósitos glaciários e pós-glaciários. Estes dois circos abraçam dois ‘ombilic’ (zonas planas e geralmente mal drenadas no fundo dos circos glaciários), ambos repletos de um imenso cervunal e destino dos rebanhos nas suas encruzilhadas por este vale.

Aqui compensa sentar-nos e pensar um pouco na nossa existência. Aqui faz-nos repensar a vida e trazer à nossa memória que, por mais atrocidades que o ser humano cometa sobre a natureza, esta estará sempre acima de nós e que tudo o que fazemos, mais cedo ou mais tarde, terá uma reação. Após a nossa merenda do montanheiro foi tempo de continuar…

Muro de betão…

Em pleno vale, tivemos um choque frontal com uma autêntica parede de betão. Remontando à década de 50 do século XX, esta barragem construída em pleno Covão do Meio, faz parte de um mega projeto de exploração hidroelétrica, cuja génese remonta ao início do século XX e que mudou definitivamente a paisagem da Serra da Estrela. Mas esse feito será abordado noutra experiência épica, onde iremos seguir o caminho da água, do topo da montanha até à última central elétrica.

Água milagrosa…

Um ligeiro cansaço apoderava-se dos meus convidados, mas a ansia de conhecer e ser alvo das surpresas que a Estrela tem, era a melhor ‘bebida energética’ que podiam usufruir. Emersos num oceano de cores intensas que a Primavera nos dá, a água da Lagoa do Covão das Quelhas reflete satisfação estampada nas nossas faces quando nos sentámos na sua margem e sentimos a água refrescante e retemperadora nos nossos pés. Um momento zen para tomarmos o café da montanha e saborearmos os biscoitos de azeite caseiros. Se a perdição existe, aqui aplicou-se na perfeição…

Bem lá no alto…

O ponto culminante da nossa epopeia aproximava-se. Passo a passo já calcorreávamos em pleno planalto superior, no reino dominado pelo Zimbro-alpino e espécies florísticas totalmente adaptadas a um ecossistema de opostos, onde o frio extremo do Inverno e o calor tórrido de Verão andam de mãos dadas. Apreciámos uma comunidade de Orvalhinhas, espécie florística insectívora típica de ambientes turfosos, vigiadas de perto pela curiosa Lagartixa-da-montanha, uma subespécie endémica da Serra da Estrela e que aqui defende o seu território, exibindo a sua vistosa cor de acasalamento. As surpresas na Estrela sucedem-se e são sempre inesperadas. Esta é uma das suas inúmeras virtudes.

Para a vida toda…

Chegamos finalmente à Torre… Ignorando as desacuadas estruturas aqui existentes e a respetiva pressão humana, há sempre algo que é superior a isso tudo: o pôr do sol na montanha. Contando ritmadamente os minutos em que o sol nos abandonava, com a luz cada vez mais ofuscada pelo horizonte, fizemos uma retrospetiva geral do dia que vivemos. Houve quem tenha mencionado que ficava aqui para a vida toda…

NOTA IMPORTANTE: Em alguns dos locais mencionadas aconselha-se a visita com acompanhamento de guia

 

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