Super Bock em Stock 2022: um ano sem enchente, mas em boa e plena forma

Várias salas para escolher e artistas para ver. No segundo dia do festival Super Bock em Stock 2022, o ecletismo reinou.

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Super Bock em Stock 2022: um ano sem enchente, mas em boa e plena forma - ©Pedro Estevens

A noite fria lisboeta não parou a vontade estrangeira nem a dedicação lúdica portuguesa de um bom sábado à noite: enquanto os restaurantes se dedicavam de corpo e alma ao Mundial de futebol, que era projetado quase por norma entre os ecrãs plasmas das esplanadas, outro evento cultural ganhava forma pelos recantos da capital. O Super Bock em Stock 2022 estava de volta para mais uma edição com o objetivo de mostrar os atos mais diversificados, irreverentes e inusitados que atualmente compõe a lista dos críticos.

Enquanto anos anteriores viram uma devota procissão que pairava de sala em sala, de cima a baixo de Lisboa, desta vez as multidões tornavam-se indissociáveis daquelas que paravam para jantar, restabeleciam forças antes de seguirem para o Bairro Alto, ou simplesmente aproveitavam o espírito natalício do Mercado de Natal do Rossio. Apesar também de um número de salas de espetáculo inferior a edições passadas, o que se destacou mais foi o mote que todos os anos vende pulseiras: o cartaz.

Pelas 18h, o ambiente era prematuro, não obstante as várias atividades que já decorriam. Entre as salas do Cinema São Jorge decorria a Talk do dia, dentro das iniciativas do Super Bock em Stock 2022, sobre o papel da identidade de género na música, com a moderação de Manuela Paraíso, voz inconfundível da Rádio SBSR.fm. O painel era constituído por Surma e Filipe Sambado, dois artistas que nunca deixaram a própria identidade em segundo plano, usando-a como arma na música que fazem. A eles juntou-se Ricardo Rodrigues, especialista em comunicação.

Na Casa do Alentejo, já se ouviam as primeiras colunas a serem ligadas e as primeiras luzes a ofuscarem o espaço. 1 hora depois, o palco preparava-se para receber Beatriz Rosário, a jovem de 23 anos que mistura os ritmos cálidos e nostálgicos do Fado a um temperamento muito pop, muito millenial. De alguma forma, foi um regresso a casa, uma vez que o vídeo do single “Ficamos Por Aqui” foi gravado precisamente neste espaço centenário.

No andar de cima, um dos grandes nomes desta edição, que não deixou de passar despercebido, subia ao palco. Estávamos na presença de Juçara Marçal, o grito urgente da música de protesto brasileira. Em voga estava o disco Delta Estácio Blues, do ano passado, que faz uma ponte entre as vivências de uma mulher negra no centro do século XXI e o frenesim da música rock experimental. Entre “Vi de Relance a Coroa, “Sem Cais” e “Ladra”, e ainda “La Femme à Barbe”, interpretado inteiramente em francês, a presença em palco, tal como as histórias que contava, era feita de forma coletiva e de repartição igualitária – ao lado dos membros, sem uma posição de destaque em particular. Apesar dos anos atrás dos microfones, das bandas de que já fez parte e do legado que já construiu no cânone brasileiro, o espírito de resiliência e de afirmação continua intacto, tal como se viu na última canção do alinhamento, “Crash”, dedicada ao fim “do racismo no Brasil”. Contou-nos que esta era o seu primeiro espetáculo fora de território brasileiro. E após 45 minutos de concerto, já tinha sido aberto espaço para a próxima banda sob o radar do aNOTÍCIA.pt para o Super Bock em Stock 2022, os Porridge Radio.

A marcha fez-se até ao Coliseu dos Recreios – uma pequena e simples subida – para ouvir a banda de Dana Margolin. O quarteto indie rock cumprimentou-nos com uma sala tímida para encher, mas com direito a vozes de coro, muitos saltos e ainda uma pequena (mas não muito bem-sucedida) tentativa de mosh-pit. Além da emoção desarmante de Margolin, as músicas não colavam entre a sala lisboeta, não obtendo pouco mais do que um tímido abanar de cabeças por parte da audiência. O último álbum compôs maioritariamente o alinhamento e, entre “End of Last Year”, “Trying” e “Birthday Party”, parecia que a banda cantava para si mesma, numa melancolia que só os membros compreendiam e respondiam.

Para encore, a brilhante “Sweet”, do álbum Every Bad, foi o momento mais aguardado do espetáculo e mesmo assim não cumpriu o que devia: “Are you guys gonna mosh now?”, perguntava a vocalista, num tom que parecia ser irónico. A verdade é que não houve tempo: entre as firmes pulsões das guitarras, com travo à música Grunge dos anos 90, interrompidas de forma constante pela voz birrenta e contemplativa de Dana, aqueles que podiam ser os momentos de puro delírio ficavam suspensos e guardados para o fim da noite.

No entanto – e felizmente – havia alguém que os merecia. Sudan Archives. O concerto da violinista americana Brittney Denise Parks, no Capitólio, foi, sem sombra de dúvida, o momento áureo do segundo dia do festival. “I did everything my own way”, contava-nos pouco minutos depois de ter começado. Fazer tudo à sua maneira é um eufemismo; o que ela fez foi cruzar o trajeto de uma vida – este novo disco, Natural Brown Prom Queen, é uma reinvenção altamente pessoal e desavergonhadamente celebratória – à memória popular – “ChevyS10” com toques de “Fast Car” da Tracy Chapman aos pequenos interlúdios que fazia apenas em violino. No final, houve dança, houve (muito) praguejar, houve gritos, houve bebida a escorrer pelos copos. Com Sudan Archives, o festival encerrou da melhor maneira: com uma devida festa.

Brittney trata a sua audiência como um verdadeiro baile de fim de ano letivo e convidou-nos, cada membro da plateia, a uma dança descoordenada e uma foto inapropriada para recordação. A abertura, a complexa e intercedente “Home Maker”, apesar de inserta, abriu a pista de dança para outros momentos: “Ciara” “Copycat” e “Confessions”. Em “Freakalizer”, ela própria juntou-se à festa no meio da plateia, como se estivesse a dançar entre amigos, antes de regressar novamente ao palco. Estes momentos de folia exacerbada eram sempre aterrados pelo som clássicos e treinado do violino, que ela tocava enquanto rodopiava.

“Lisboa, we’re to get freaky! Let’s get freaky”. Lisboa deu tudo – suou, gritou, dançou – mas por mais que tentasse não conseguia acompanhar o furação que é Sudan Archives: a energia contagiante, o luzimento nas suas letras, a forma desprendida com que brinca com o sério. No final, a pedido de um público ainda impaciente e com vontade de abanar o rabo por mais uns minutos, houve “Come Meh Way” e a festa no Super Bock em Stock 2022 ficou oficialmente cimentada.

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