Cicloficina dos Anjos – “The Fun Between Your Legs”


Sentados numa biblioteca, mas em modo de conversa de café, anoticia.pt encontrou-se com a Cicloficina para perceber como tudo começou e para onde se “pedala” neste momento.

anoticia.pt – Como surge, quais as motivações e qual o contexto que levaram à criação da Cicloficina?

Cicloficina dos Anjos (CA) – O que existia até ao aparecimento da Cicloficina dos Anjos era a Cicloficina de Lisboa que funcionou em três sítios. No Bacalhoeiro e fazia-se Cicloficina naquele largozinho da Casa dos Bicos, depois no Crewhassan nas Portas de Santo Antão onde também era feita na rua e depois foi transferida para aquela praceta próxima do Fórum Lisboa e funcionava também na rua. Era uma coisa muito de carolice…. Nessa altura não havia um universo de peças a que os ciclistas tivessem acesso; portanto, teriam que as comprar em lojas e nós ajudaríamos a montar. Com a abertura do RDA69 houve um namoro não sei de quem e [a Cicloficina] foi o primeiro coletivo a existir no RDA69, 6 meses após a sua abertura. Portanto, abre o RDA69 numa forma embrionária, e é com o aparecimento do RDA69/Cicloficina dos Anjos que o RDA69 passa a ter uma atividade semanal que não tinha até então. Com uma regularidade semanal e com o facto de se terem peças e ferramentas disponíveis sempre no mesmo espaço, abriu-se um leque o que permitiu que isto começasse a funcionar como um ponto de encontro de utilizadores de bicicleta e como um sítio de apoio para a reparação mecânica [de bicicletas].

Funcionámos cerca de 5 anos e meio no RDA. Depois funcionámos provisoriamente na Faculdade de Ciências, Belas Artes e no Técnico durante cerca de 6 meses e entretanto começámos a utilizar um espaço (Rua Almeida Amaral, 15) onde funcionamos em autonomia segundas e quartas feiras das 19.00h-22.00h, dentro dos mesmos moldes em que funcionávamos no RDA.

 

anoticia.pt – E como surge então a Cicloficina de Lisboa?

CA – Apareceu em conversas da Massa Crítica de Lisboa. A Massa Crítica de Lisboa é um evento que se realiza na última sexta-feira de cada mês, que serve para promover o uso da bicicleta. É um evento que não tem organização; as pessoas aparecem e combinam o passeio que querem dar nesse dia. Só tens uma certeza; sai sempre do Marquês de Pombal por volta das 19.00h.

 

anoticia.pt – Mas para além de se andar de bicicleta, a Massa Crítica faz mais alguma coisa?

CA – Tem um aspeto reivindicativo do direito ao uso da bicicleta. Portanto, tem essa componente de mostrar às pessoas (aos automobilistas principalmente) que é possível andar de bicicleta na cidade e também mostrar as lutas com que nos deparamos nesses momentos. Uma vez a Massa Crítica foi até Santa Apolónia porque havia lá uma manifestação por causa do que se estava a passar no Rio Côa e a Massa Critica. Portanto, a Massa Crítica para além de ter conteúdos sobre a mobilidade em bicicleta, também tem uma série conteúdos à volta da Ecologia, do Sustentável, de um Planeta Verde. A Massa Critica e a Cicloficina nesse aspeto são muito mais amplas. Por exemplo, quando houve a manifestação contra o FMI, a Massa Crítica também passou perto do Campo Pequeno todos a tocar as campainhas e tivemos lá a dar umas voltas. Até mesmo noutro tipo de manifestações, como por exemplo as manifestações pelo Planeta, tenta-se sempre, no grupo da Massa Crítica, pedir a pessoas que participem de bicicleta.

 

anoticia.pt – Quais  os moldes em que funciona atualmente a Cicloficina dos Anjos?

CA – Os moldes em que funcionamos estão relacionados com a transmissão de conhecimento, ou seja, ensinamos todas as pessoas que procuram a Cicloficina como resolver os seus problemas, quer a nível mecânico, quer a outro tipo de nível, por exemplo, pessoas que têm dúvidas sobre a legislação aplicada aos ciclistas. Também, tentamos perceber sobre as pessoas que nos procuram, qual o tipo de ciclismo que gostam de fazer e no caso de terem bicicletas desadequadas para essa prática nós tentamos dar dicas.

Para além disso, procuramos ser um ponto de convívio; fazemos festas de aniversário, fazemos passeios de bicicleta noturnos que são os NACOS (Noites Alucinantes de Cicloficina), vamos participando em atividades móveis e culturais em que levamos a Cicloficina Móvel e vamos partilhando a nossa experiência em coisas sobre a mobilidade.

Há 2 anos ou 3 ganhamos o Prémio Mobilidade na categoria de Ativismo, atribuído pela Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta. Também concorremos, há 3 ou 4 anos, ao prémio Montepio Voluntariado Jovem que ganhamos. Também concorremos a um prémio da União Europeia de Mobilidade e ganhamos. Foi a primeira vez que o prémio veio para Portugal. Foi um prémio para promover a abertura de outras cicloficinas fundamentalmente em Faculdades.

 

anoticia.pt – Na vossa forma de funcionamento vocês abordam a questão da bicicleta de uma forma mais global. Essa forma de abordar a questão da bicicleta é exclusiva da Cicloficina dos Anjos?

CA – Não. O conceito de cicloficina existe em quase todos os países da Europa. Em relação à questão da bicicleta partilho uma frase americana que diz “The fun between your legs” e de facto a bicicleta é exatamente isso; é a diversão no meio das pernas. Tu ao pedalares deslocas-te e [o ciclista e a bicicleta] formam um todo, em que a bicicleta te transporta mas ao mesmo tempo, tu tens que ter todo o “know-how” para conduzires a bicicleta. Mas é um veículo com uma manutenção muito simples que está ao alcance de qualquer pessoa e é isso que nós também tentamos incentivar: a autonomia da utilização das máquinas com que convives.

 

anoticia.pt – Em relação à participação no espaço, como é que funciona? As pessoas chegam lá com as bicicletas e o que é que se segue?

CA – As pessoas chegam lá com as bicicletas e inscrevem-se numa folha de triagem. Se quiserem fazer o trabalho sozinhas fazem. Se não, têm que ficar à espera que haja um voluntário disponível. Normalmente, o objetivo do voluntário é não sujar as mãos, ou seja, que a pessoa que lá chega faça tudo. No entanto, isso nem sempre acontece porque às vezes há situações mais complexas que exigem que os voluntários sujem as mãos. Não funcionamos como loja. Portanto, tu não deixas a tua bicicleta e dizes: “Repara-me aí a bicicleta e diz-me quando é que está pronta que nós vimos cá buscar”. Não.

 

anoticia.pt – E qualquer pessoa se pode ser voluntário na Cicloficina dos Anjos?

CN – Sim. Ao fim de 1 mês, mês e meio de aparecer nas sessões passa a fazer parte do Coletivo Cicloficina, caso queira. Portanto, ao fim desse tempo é convidada para pertencer ao Coletivo o que significa que é convidada para participar na autogestão da Cicloficina. Se não estiverem interessadas nessa parte, podem continuar a aparecer e a disponibilizar o seu tempo de uma forma gratuita. A Cicloficina é uma atividade gratuita ou por donativo livre (quem quiser deixar qualquer coisa é livre de o fazer).

 

anoticia.pt – Falando de um aspeto mais generalista, vocês diriam que Lisboa é uma cidade “friendly” para as bicicletas?

CA – Acho que está a caminhar para lá. Se há 10, 15 anos não era de todo e era muito raro ver um ciclista a pedalar na cidade, hoje em dia é cada vez mais comum e isso é um sinal que a cidade está a ficar mais plana, mas que também está a oferecer mais condições de segurança e infraestruturas para que mais pessoas possam utilizar a bicicleta sem ser a um nível de aventureirismo no meio do tráfego. Hoje em dia já não é só uma coisa de passeio, ou um brinquedo de fim-de-semana e isso deve-se não só às infraestruturas que se têm criado, mas também ao aprender com os pares: tu vês uma pessoa “igual” a ti a andar de bicicleta na rua e pensas “se calhar eu também consigo fazer isso. Amanhã vou experimentar”. E isso é um efeito que se vai multiplicando pela interação entre os próprios utilizadores de bicicletas.

 

anoticia.pt – Então a evolução em termos da mobilidade das bicicletas em Lisboa, não sendo perfeita, tem sido positiva?

CA – Sim, tem sido positiva, mas como todas as evoluções, tem lapsos… Há ciclovias, as que estão em cima dos passeios que estão mal desenhadas, porque normalmente quem vai andar nessas ciclovias são pessoas que já têm uma certa idade, são pessoas que levam carrinhos de bebé e isso muitas vezes atrapalha a circulação do ciclista. Mas o que é facto é que isso [as melhorias nas infraestruturas] traz mais pessoas a andar de bicicleta e essas pessoas também se tornam mais críticas em relação às infraestruturas e ajudam a melhorar… Este ano é o ano do lançamento das bicicletas partilhadas pela Câmara Municipal de Lisboa. O projeto embrionário está na zona da Expo, mas tu vais ter 100 estações espalhadas na cidade onde tens várias bicicletas que podes pegar, de forma quase gratuita. Houve também evoluções associadas a esta “cidadania em bicicleta”. Por exemplo, o Metro de Lisboa em todo o horário do metro leva bicicletas nas carruagens do meio; já há 6 carreiras da Carris que já levam bicicletas; os barcos da Soflusa passaram a levar bicicletas; a CP também aderiu, quer nos urbanos, quer na Fertagus.