O vício da Serra da Estrela inclui neve
Seguindo a profecia do artigo anterior, “O vício por esta montanha ainda nos vai matar… Mas de alegrias”, ao chegarmos à Serra da Estrela fomos autenticamente fuzilados pela sua paisagem de serrania, pelo seu cenário branco que cobre as penedias de granito, onde o nevoeiro se deita sobre as encostas e se mistura com neve, transportando-nos para uma paisagem de Transilvânia. É este o cenário que queríamos e é este o cenário que temos…
Sentimento inexplicável.
Acho que sofremos do “síndrome de Moby Dick”, como referido no livro “A pantera das Neves, do escritor e ensaísta Sylvain Tesson. Mas em vez da ‘fome’ nefasta de perseguir um cetáceo albino, arpoá-lo e saciar a sede de vingança doentia, apenas queremos algo muito mais simples e sem violência associada: ver, sentir, fotografar e interagir com a montanha nevada.
Passar os dias e noites à espera de algo que, ano após ano, sabemos que vai sendo cada vez mais improvável nas nossas latitudes é algo que sempre nos fez questionar. O porquê de tal atração (que referi no artigo anterior), que roça a índole narcótica? Talvez a sua inconstância; ou a nova noção que temos do tempo, quando interrompe a sua cavalgada; ou provavelmente um fenómeno da natureza que transporta em si uma nostalgia inexplicável; ou, quem sabe, um fator cultural onde os nossos pais e avós sempre alimentaram a nosso imaginário.
Estamos lá…
A pé subimos pela encosta, onde o branco é cada vez mais branco e torna-se num deserto de neve e gelo. O tal silêncio da natureza e a tranquilidade que transpira vai ganhando adeptos: nós. É também isso que procuramos, isso que alimenta a nossa paixão e o nosso respeito pelas montanhas. É ela e nós, mais nada. É a energia que alimenta os nossos músculos e nos faz continuar a escalar, a vencer a inclinação e o piso cada vez mais impercetível e instável.
Chegamos ao topo e, a Torre emerge no nevoeiro com as suas duas estruturas mais identitárias, mas abandonadas e em ruínas. A existência discute-se e torna-se um tema cada vez mais abordado. A delicadeza e simbologia deste planalto, sendo o ponto mais cimeiro de Portugal Continental, o ponto-chave de um Parque Natural, Sítio de Interesse Comunitário Rede Natura 2000, Zona Húmida de Importância Internacional ao abrigo da Convenção de Ramsar, Unesco Geopark é, ao mesmo tempo, o culminar da pressão humana, que com a sua ambiguidade o trata de forma pouco digna há gerações, numa perspetiva turística caduca, que já não obedece à nova tendência de turismo que se perfila e se desenvolve nos novos players de turismo privado e público. Um turismo onde a palavra sustentabilidade deve erguer-se na primeira linha, onde não nos servimos do que a montanha e os seus ecossistemas nos dão, mas sim trabalhamos em simbiose. O que ela nos dá damos a ela, ajudando-a, não esgotando-a.
Bafejados pela sorte
A neve deixa literalmente de desabar do céu, as nuvens envolvem-nos e o céu confunde-se com a superfície terreste, o que nos faz pensar que o propósito de levitação é de facto possível. Antes de iniciarmos a descida para a outra vertente, a entropia das nuvens faz uma ligeira pausa e deixa o sol entrar em cena. Tem o seu protagonismo como ator secundário neste dia, pois o Óscar de categoria principal está entregue a quem de direito.
O por do sol também quer subir ao palco, quer justamente participar na parte final de um espetáculo de pura magia e nós, sentados nas falésias e devidamente refartados de natureza montanhosa, aplaudimos a sua atuação sem mácula. Ao contrário do que acontece, aqui nunca existe o “The end”…
NOTA IMPORTANTE: Nestes percursos, aconselha-se vivamente a visita com acompanhamento de guia.
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